A simulação de atentado de Loester Trutis desencadeou uma série de informações, sobre sua relação com fábrica de armas e uso de verba parlamentar, que o deputado federal nem imaginava ao criar a cena.
O Correio do Estado teve acesso com exclusividade à investigação da Polícia Federal, que levou a inquérito tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF) e trouxe revelações de que Trutis gozava de uma linha direta com o presidente da Taurus, empresa que fabricou as armas apreendidas em sua residência, comprou a preço de banana um fuzil desejado pelos amantes de armas e, ainda, recebeu mais de R$ 91 mil por alugueis de seu gabinete ao homem que serviu de “laranja” na compra do fuzil.
A Taurus é a maior indústria de armas do Brasil, tem sede em São Leopoldo (RS) e está listada na Bolsa de Valores (B3).
Tudo começou na manhã do dia 16 de fevereiro de 2020, domingo, quando Trutis chegou à sede da Superintendência da Polícia Federal em Campo Grande escoltado pela Polícia Militar. Afoito, dizia que fora alvejado por pistoleiros em uma rodovia.
Meses depois, aqueles policiais federais, já com indícios de que o atentado foi falso, cumpriram mandados de busca e apreensão em endereços do deputado e descobriram uma rede de contatos e informações para compra de armas.
Trutis, que foi eleito postando fotos de armas e hambúrgueres em seu Facebook, faz parte da bancada do armamento na Câmara dos Deputados.
Ironicamente, ele não poderia ter registro de armas por conta de processos de violência doméstica a que responde.
A investigação mostrou que ele usou assessores e colegas de tiro para adquirir as armas e se vangloriava de ter um relacionamento próximo com generais, coronéis e o presidente da Taurus, Salésio Nuhs, para discutir sobre pistolas e fuzis.
Em conversa com o assessor Ciro Fidelis, seu braço-direito no gabinete e também na compra de armas, ora fazendo de despachante, ora de intermediário, Trutis conta que conversou com Salésio.
“Ciro, o Salésio deu o sinal para a gente poder comprar uma arma. É, quer dizer, uma pistola e o revólver pela PF, tá? Não precisa ser CAC, não. Então... vamos mexer isso aí?”.
A conversa no dia 21 de maio de 2020 mostra que o deputado tirava suas dúvidas com o presidente da Taurus para comprar armas, mesmo com restrições por ter antecedentes envolvendo violência doméstica.
Como integrante da bancada armamentista, grupo de parlamentares que defende os interesses da indústria bélica no Congresso, Trutis teria se aproveitado dessa proximidade com o presidente da Taurus para mais vantagens, como descontos para lá de vantajosos no preço do fuzil.
A investigação da PF aponta que Jovani Batista da Silva teria comprado dois fuzis T4 como seus, mas na verdade um deles seria de Trutis.
Em conversas captadas pela PF, Ciro conversa com um colega de estande de tiro, em junho de 2020, e se mostra irritado por ter de mandar a nota fiscal do fuzil T4 para um armeiro fazer umas melhorias (solicitadas por Trutis):
“O armeiro está pedindo a nota fiscal do fuzil”, diz o colega.
“Ah, fala sério!”, responde Ciro.
“[...] Fala que não sabe onde que está a nota, sumiu, escafedeu-se, dá qualquer desculpa! Porque nesta nota está aquele desconto, e eu não quero que o pessoal fique vendo esse desconto na nota!”.
O temor de Ciro era que as pessoas do mundo das armas vissem que o valor da nota do fuzil era de R$ 4.300, bem abaixo do valor da arma no site, R$ 14 mil.
“Enrola o cara e vê se dá para apresentar sem nota, irmão!”, insiste Ciro.
O fuzil está registrado em nome de Jovani, que, além de parceiro de tiro e dono de uma propriedade rural onde Trutis queria levar um general para caçar javalis, também se apresenta como dono do prédio que o deputado aluga para seu escritório político.
Desde setembro de 2019 até setembro deste ano, o gabinete de Trutis pagou R$ 91.255 em aluguéis à mãe de Jovani. Uma conversa que consta na investigação mostra Ciro falando com Jovani sobre o prédio e perguntando se ele era o dono:
“Trabalho com o deputado Loester Trutis. Preciso conversar com você sobre o prédio que você tem para alugar. Qual o endereço do prédio?”, pergunta Ciro.
“Rua João Pedro de Souza, 539”, responde Jovani, em mensagem do dia 7 de agosto de 2019. Um mês depois aparecem os valores na verba de gabinete de Trutis, R$ 3.375, sendo reajustado para R$ 5,5 mil em dezembro de 2020.
A amizade dos três teve uma prova de fogo no dia 12 de novembro de 2020, quando a Operação Tracker flagrou or armamentos e levou Trutis detido por estar com armas.
Na ocasião, os policiais federais encontraram o fuzil embaixo da cama em que o deputado dormia.
Ele chegou a admitir que o fuzil era de Jovani, usavam para dar tiros na fazenda, e que ele havia pago pelas armas. Contudo, quando foi interrogado, já na Superintendência da PF, ele preferiu ficar em silêncio sobre quem era dono das armas.
A simulação de atentado, que deu início à linha de fogo em que Trutis se meteu, seria para chamar atenção para sua candidatura a prefeito em 2020.
Além de ter sido investigado pela PF, Trutis não conseguiu ser candidato, pois seu partido, o PSL, deixou-o isolado e fora da eleição.
Procurado para falar sobre o relacionamento com Loester Trutis e o desconto dado no preço do fuzil, o presidente da Taurus respondeu, por meio de sua assessoria, que:
“A Taurus desconhece o conteúdo do mencionado inquérito. A Taurus possui uma área de compliance atuante e segue estritamente a legislação e a regulação aplicáveis para a venda de seus produtos”. Questionados novamente sobre o desconto e qual a relação entre o deputado e Salésio, a assessoria não retornou.
Loester Trutis, por meio de nota distribuída pela assessoria, já que não tem o hábito de responder questionamentos da imprensa local, voltou a falar sobre as “quadrilhas que assolam o Estado de Mato Grosso do Sul há mais de 30 anos”.
“Sou vítima de um refinado conluio de autoridades locais, que induziram o PGR [procurador-geral da República] e a ministra a erro. Testemunhas essenciais não foram ouvidas e provas foram destruídas ou manipuladas, como, por exemplo, o GPS do carro que eu ocupava, que foi formatado pela locadora", diz a nota.
Ou mesmo o veículo alvejado, que não foi preservado pela polícia técnica, tendo sido devolvido à locadora, reformado e vendido. Em ambos os casos me foi cerceada qualquer possibilidade de proceder perícia complementar e independente. Tudo isso foi feito com a autorização da Polícia Federal de Mato Grosso do Sul, um verdadeiro absurdo jurídico”, complementa a nota.
O inquérito foi dividido, e novas investigações do caso se desdobram, envolvendo outras pessoas que compraram armas que estavam com Trutis. Tudo indica que o tiro do atentado saiu pela culatra.